Luís Carmelo - Qualquer Um Pode Escrever?
A iniciar as hostilidades, deixo por cá a segunda parte de um texto de Luís Carmelo, intitulado "Qualquer um pode escrever? Técnica ou imaginação?", resultado da reflexão em torno das questões propostas pela conferência com o mesmo nome e com textos integrais disponíveis no BOCC e no Recensio. As expressões a negrito e a itálico, os hyperlinks e a imagem são da responsabilidade de CJT.
[imagem: autor desconhecido]
QUALQUER UM PODE ESCREVER? TÉCNICA OU IMAGINAÇÃO?
Luis Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa - transcrição parcial
Tentando responder à segunda questão - "qualquer um pode escrever?" - é evidente que respondo, desde logo, que sim. Até porque as capacidades humanas correspondem a diversos potenciais que, em equidade mínima, diga-se, estão sempre aptas a transformar-se em acto, através do respectivo esforço, vontade e desejo.
Contudo, nem nós estamos aptos a actualizar potencialidades que não perseguimos, ou que, pura e simplesmente, escapam ao limiar da nossa atenção, vontade e desejo. E diga-se, na verdade, que não há instituição reguladora - tal como a CNVM que regula a bolsa - que separe as águas e nos diga quem é e quem não é sujeito-escritor. É por isso que todas as tentativas teóricas que tentaram, à partida, separar conceptualmente literatura e não-literatura, tal como a ideia de literariedade, falharam. Isto não quer dizer que não existam textos que são literários e textos que o não são. Contudo, o aferimento, a inferência, a decisão pertence mais a um círculo hermenêutico e social, onde interagem, de modo eclético, o texto por si mesmo, o texto da crítica por si mesmo e a ambuguidade da consciência de cada um; isto é, do público. O resultado acabará por ser, mais uma vez, uma amálgama, uma soma de diferendos, um espaço aberto de possibilidades. É por isso que a Margarida Pinto Correia e o Mário Cláudio recortam, nesse círculo hermenêutico e social, interesses e paixões diferenciadas; e é por isso, que uma bela quadra de gosto popular e uma passagem do Ulisses de Joyce recortam, nesse círculo hermenêutico e social, interesses e paixões completamente diferenciadas.
Para terminar, queria ainda referir, nesta linha, que subtrai o factor da construção retórica da escrita - tema para um livro, repito - ao factor imaginativo que, se há dúvidas e ambiguidade no que toca à ideia precedente, o mesmo já não acontece quando nos referimos explicitamente à imaginação.
Para o exemplificar, centro-me nas investigações do neurocientista António Damásio, para quem o cérebro é um exemplar contador de histórias. Com efeito, no seio da verdadeira rede de relatos com que concebe o diálogo dos vários níveis da consciência e seus sis, ou seja, da antecâmara que designa por "proto-si" à "consciência nuclear" e desta ao topo da "consciência alargada", António Damásio conclui que "contar histórias precede a linguagem", o que é até, "afinal, uma condição para a [própria] linguagem" [...] "que pode ocorrer não apenas no córtex cerebral, mas noutros locais do cérebro, quer no hemisfério direito, quer no esquerdo" [ibid.:221]
António Damásio [1] vai mesmo mais longe e conclui que toda a tradição, baseada na filosofia da consciência e que sublinha o importante papel da intencionalidade [Husserl, Sartre, Merleau-Ponty, Lévinas, etc.] - para além de outras formas de ênfase à intencionalidade, enquanto prática filosófica - não passa de uma consequência desta verificação simples: a capacidade do cérebro em contar histórias. Diz o autor: esse "dizer respeito a", exterior ao cérebro, tem exactamente "como base a tendência natural do cérebro para contar histórias, o que ocorre sempre da forma mais espontânea possível" [ibid.:221]. Aliás, na discussão que as Luzes empreenderam, no século XVIII, em torno do problema da representação [de David Hume a Kant], já a figura da imaginação surgia como uma entidade decisiva, autónoma e transformadora das interacções estre o representado e o representante.
C. Gianetti [2], referida por Damásio em O Sentimento de Si, também sublinhou o facto biológico e comunicacional que, ao fim e ao cabo, alicerça esta auto-narração humana silenciosa que se arrasta imparavelmente na mente: "Enquanto o corpo permanece imóvel, a mente pode empreender as mais surpreendentes viagens." [...] "A investigação desta capacidade de abstracção do cérebro humano constitui um dos objectivos fundamentais da neurociência" [...] "Para isso, as células criaram um sistema de comunicação baseado em fibras conectoras que estabelecem o nexo de cada neurónio com um número de células vizinhas que pode chegar até dez mil. Estes nós poderiam alcançar a incrível quantidade de mil biliões de conexões interneurais em cada cérebro".
Isto significa que o ser humano é um ser, não só para tomar conta do mundo como adiantou Heidegger, não só para a sobrevivência pura como admite Damásio na sua última obra, mas é também, e desde a origem, um ser com e para a imaginação. Neste quadro, poder-se-ia concuir que a literatura, enquanto exclusiva arte que fala, enquanto extensão possível do cérebro que oensa, é a única forma de delírio e de "loucura" que a modernidade social e legalmente autorizou, não a condenando, portanto, à fronteira racional do hospício.
[1] A. Damásio, O Sentimento de Si, Europa-América, Lisboa, 2000.
[2] C. Gianetti, Traspassar a Pele, o teletrânsito, in Ars Telemática, Relógio D'Água, Lisboa, 1998:120/1


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